PRIMEIRO VOO
Do sonho de criança nasceu o desejo de voar. Do desejo de voar nasceu a vocação.

Marcos Pontes
Fevereiro 2009

“Só aqueles que se arriscam a ir mais longe, saberão até aonde podem chegar!”

Cheguei 08:00 em ponto. Uma hora antes do horário combinado para o “briefing”. Céu claro, azul. Apenas algumas nuvens espalhadas lá e cá, só para quebrar a monotonia monocromática e melhorar, ainda mais, o cenário. Sobre a velha torre de controle eu podia ver a “biruta” balançando murcha na brisa, como uma grande meia colorida na ponta de uma antena. Vento calmo. Isso é bom!
A arquitetura “art-decó” do aeroclube, projetado por engenheiros da Noroeste do Brasil, e fundado em 1939, era exatamente como imaginamos que deveria ser um pequeno aeroporto do interior das estórias da aviação. De um lado do estacionamento, os antigos hangares de madeira, onde foram escritos capítulos importantes da história da construção de planadores no Brasil. Do outro lado, o prédio principal, branco, retangular, que se estendia com os seus dois andares pelo comprimento de uma quadra de basquete. A parte superior da fachada do prédio, alinhada com a pista de pouso, era dominada por janelas de vidro ao longo de todo o seu comprimento. Logo abaixo das janelas, escrito em letras azuis de concreto em relevo: “AERO CLUBE DE BAURU”.
Estacionei o carro voltado para a pista de pouso e fiquei observando a história por alguns minutos. Mistura de apreensão e felicidade.
Finalmente, o meu primeiro vôo!
Quantas e quantas vezes eu já havia estado ali, exatamente no mesmo lugar. Menino suado, roupas cheirando à graxa, empoeirado da jornada de areia e labuta. A bicicleta encostada na cerca, e o rosto grudado na grade de arame que me separava dos aviões, dos pilotos, e dos meus sonhos.
Peguei minha caderneta de anotações, respirei fundo, tranquei o carro. Vamos lá! Chegou a hora!
Eu deveria encontrar com o instrutor na hangar que ficava atrás do prédio principal.
Na frente do prédio principal havia um pequeno jardim com bancos de concreto e plantas bem cortadas, sempre bem freqüentadas por pardais e tico-ticos. Conforme passava pelo jardim, eu me lembrava das vezes que sentei naqueles mesmos bancos, sonhando, planejando como ser piloto, um dia, talvez…
No térreo, ficavam algumas instalações de serviço, o pequeno saguão de entrada com a escada para o andar superior, e uma lanchonete com mesas espalhadas até o jardim, onde os pilotos costumavam sentar no final da tarde para tomar uma cerveja e conversar sobre os vôos do dia. No piso superior ficavam as salas de aula, as salas de administração e, bem no canto, com a melhor visão da pista, a sala de tráfego. A torre de controle se destacava do restante da construção. Era como se um cômodo quadrado do centro do prédio tivesse sido esticado verticalmente por quatro andares, deixando, em cada andar, algumas janelas e uma varanda externa cercada ao longo de todo o seu perímetro. No topo da torre, uma plantação de aparelhos de meteorologia e antenas de rádio.
Pois é! Meio caminho andado. Hoje será um grande dia!
No ano anterior eu havia entrado na Academia da Força Aérea, a AFA, em Pirassununga. Parte do meu sonho tinha sido realizada. De eletricista aprendiz da Rede Ferroviária, estudando o vestibular com livros sujos de graxa, eu me transformei em um Cadete Aviador da Força Aérea! Contudo, já no final do primeiro ano de curso na AFA, eu ainda não tinha entrado em um avião. Naquela época, em 1981, o curso da Academia iniciava com muitas horas de aula, e nenhuma hora de vôo. A instrução aérea começaria apenas no ano seguinte, e o atrito seria alto. Começaríamos o ano com cerca de duzentos cadetes. A expectativa era que esse número fosse reduzido para cento e cinqüenta no final da instrução aérea do segundo ano. Os desligamentos em vôo eram freqüentes. Os cadetes aviadores desligados em vôo podiam tentar uma vaga nos cursos de infantaria ou de intendência. Se não houvesse lugar, a alternativa era a porta da rua. Isso era inaceitável para mim!
Portanto, era preciso trabalhar uma solução de forma antecipada e sistemática. Decidi fazer algumas horas de vôo no aeroclube, aproveitando os finais de semana em Bauru, antes de começar a instrução de vôo na AFA. O meu plano era identificar e corrigir possíveis dificuldades em vôo muito antes do meu primeiro “briefing” militar. Isso certamente aumentaria minha probabilidade de sucesso no curso de aviador!
As horas de vôo eram caras, mas eu havia economizado parte do meu pequeno soldo de Cadete durante todo o ano, justamente para isso. Eu conseguiria pagar por algumas horas, pelo menos.
Ao chegar no hangar, para minha surpresa, o instrutor já aguardava por mim.
– Bom dia! Você deve ser o Marcos, correto? Meu nome é Cardia, eu serei o seu instrutor hoje.
– Muito prazer! – eu disse.
Eu já tinha estado ali outras vezes, quando ajudava a empurrar as aeronaves do aeroclube, mas aquele dia era diferente. A estrutura de madeira do hangar, o teto curvado, até o cheiro de gasolina de aviação parecia mais forte, mais gostoso.
– Você já voou alguma vez? – perguntou Cardia.
– Não, é a primeira vez...
Eu me sentia um tanto constrangido e inseguro. O instrutor, experiente, olhou para mim de um modo tranqüilo e interrompeu:
– Não se preocupe! Vamos os cheques com calma, sem pressa. Pergunte tudo o que você não entender. OK? – e continuou – Temos tempo até a decolagem. Vamos aproveitar e dar uma olhadinha no avião.
Difícil de acreditar. Aqui estamos nós, eu e o instrutor, dentro do hangar do Aeroclube de Bauru, conversando sobre o meu primeiro vôo! – eu pensava, observando o instrutor procurar por alguma coisa na mesinha.
Ele pegou um livrinho da gaveta e caminhamos juntos pelo piso irregular do estacionamento da frente do hangar, na direção de dois aviões que estavam sendo abastecidos, um Cessna 152, e um Uirapuru.
– Você pediu para voar no KBS, certo? – perguntou Cardia.
– Sim. Este ano eu começo a voar o T-23 na Academia. Eu preciso me adaptar ao avião antes dos vôos de instrução militar.
– Entendi. O nosso Uirapuru é um T-23 civil. Tem algumas diferenças nos comandos, no interior, e algumas outras coisinhas, mas sabendo voar este aqui, você vai tirar de letra o curso da Academia.
O PP-KBS era um Uirapuru 122B, versão civil do T-23 usado para a instrução básica da AFA naquele tempo. À medida que nos aproximávamos do avião, dava para ver mais dos seus detalhes, assim como do movimento de preparação das aeronaves para mais um dia de instrução. O caminhão de abastecimento, o cheiro de combustível que vinha com o vento, os cheques de pré-vôo, o meu coração agitado. O avião era branco com faixas azuis, cores bem diferentes do laranja característico dos “Zarapas” da AFA. Zarapa era o apelido que os T-23 ganharam na Força Aérea, ainda no tempo em que esses aviões voavam em Natal, RN. Não sei a origem do nome, mas, por alguma razão, ele se encaixava bem para aquele pequeno e robusto avião fabricado pela Aerotec de São José dos Campos, SP.
O abastecimento terminou. O funcionário, fechou a tampa sobre a asa esquerda, recolheu a mangueira enrolada na parte traseira do caminhão e caminhou em nossa direção escrevendo no bloco de notas sobre uma prancheta suja de graxa.
– Bom dia! O senhor pode assinar o abastecimento? Entrou 87 litros. – disse o abastecedor.
Cardia assinou a nota. O funcionário destacou as vias, entregou uma para o instrutor, virou-se para mim e, com um sorriso irônico, perguntou:
– Novo aluno?
– Pois é, meu primeiro vôo. Você abasteceu direito esse negócio? Olha lá! – eu disse, tentando disfarçar o nervosismo.
Ele sorriu – Fique tranqüilo! – subiu no caminhão e partiu.
Cardia pegou o livrinho que trouxera do hangar e disse:
– Este aqui é o check-list do KBS. Aqui estão os procedimentos normais e de emergência. Você vê que é um aviãozinho simples, mas tem alguns pontos importantes para observarmos. Vamos fazer uma inspeção externa e eu vou mostrando os detalhes.
Seguimos pela inspeção, circulando a aeronave no sentido horário. Motor, óleo, tampas fechadas corretamente, tubo de “pitot”, pneus, tomadas estáticas, calços, fitas, freios, travas, superfícies de comando, combustível, drenagem, etc., etc.
O pequeno avião parecia um pássaro, feliz, pronto, ansioso para o seu primeiro vôo do dia.
Depois de cerca de meia hora ao redor da aeronave, seguimos para a sala de tráfego onde preenchemos o “plano de vôo” e checamos a previsão da meteorologia. Tudo feito, tudo perfeito.
Retornamos para o hangar. Cardia pegou o relatório do avião de um escaninho sobre a mesa. É nesse documento que são registrados todos os vôos e os serviços de manutenção feitos na aeronave. Ele olhou calmamente cada anotação feita pelos pilotos e mecânicos e disse:
– Isto aqui é muito importante. Pela análise do que escreveram nesse relatório, podemos saber o que não está funcionando bem no avião, ou mesmo quais são os seus problemas crônicos de “saúde”. Cada avião é como uma pessoa, você tem que entender suas manias e peculiaridades. Precisamos prestar muita atenção nisso.
Interessante, aquele foi um conselho que usei, e passei para todos os meus alunos, ao longo de toda a minha carreira. Aliás, essa simples observação já me salvou de graves acidentes.
Caminhamos para o avião novamente. Desta vez ele foi falando sobre o que faríamos no vôo. Cada detalhe, cada cuidado, o que eu deveria fazer, o que eu deveria olhar, o que eu deveria esperar. Ouvi com toda a atenção do mundo. Memorizei o que pude. Difícil seria lembrar tudo aquilo em vôo.
Repetimos a inspeção externa. Agora seguindo exatamente o check-list, e comigo fazendo todas as inspeções e comentários. Ele ia corrigindo e fazendo algumas observações extras.
Entramos no avião. A amarração (colocação dos cintos de segurança) e o ajuste do assento foram feitos com cuidado.
– Você esta vendo o nariz do avião? – ele perguntou – é importante que você se sinta confortável, sem ficar solto no assento, mas sem ter que se esticar todo para ver o nariz, ou para atuar em algum comando.
Depois de amarrado ao assento, o avião parecia maior do que eu imaginava. Estranho como essa sensação tem a ver com a nossa percepção de “falta de controle” sobre a situação.
Na minha interpretação e insegurança do momento, o painel do avião se multiplicou em instrumentos, botões, interruptores, luzes e ponteiros. Logicamente, eu já tinha uma boa noção do que eram, assim como da função da maioria deles. Na Academia, eu consegui um manual de vôo emprestado. Era a minha leitura de cabeceira, todas as noites, antes de dormir. Se eu fechasse os olhos eu podia até dizer em que página, e mesmo em qual lugar na página, estava um determinado assunto ou sistema. Mas ali, na prática, a mente lutava para manter tudo em perspectiva. Calma! Você conhece isso, você estudou. Pense com lógica. Respire! Calma!
Com concentração, acompanhei o check-list para todas as inspeções antes da partida. Não eram tantas assim!
– OK! Tudo pronto para a partida. Vamos lá, vamos nos transformar em um pássaro! – disse Cardia.
Linha por linha todos os procedimentos antes da partida foram executados. Faltava apenas um: o contato.
¬ Cardia bloqueou o interruptor:
— Antes de girar a hélice, verifique se não há nenhum obstáculo.
Eu parei, tirei os olhos fixados do painel, levantei a cabeça, observei à nossa volta, uma, duas vezes, nada. Não havia nenhuma pessoa ou equipamento próximos da hélice, apenas um piloto fazendo a inspeção externa do Cessna 152 a uns dez metros da nossa asa direita. Bem mais distante, eu podia ver duas crianças grudadas na cerca do aeroclube assistindo a nossa partida. A próxima geração! — eu pensei
— Acho que está tudo livre — eu disse.
— Então grite “livre!”, e vamos lá!
O motor de partida agonizou as primeiras duas ou três voltas da hélice. A pequena aeronave sacudiu cada parafuso quando o motor pegou, girando a hélice vigorosamente e varrendo a cabine com o vento de um furação. O roncar constante do motor modulado pelo ruído cadenciado da aerodinâmica do ar que passava pelas pás da hélice eram como uma sinfonia para meus ouvidos, tanto tempo ansiosos por aquele momento. A medida que o giro do motor estabilizava, o KBS abaixava o nariz, forçando os freios e os calços amarelos colocados nos pneus. Ele queria partir, alçar os ares!
Lembrei-me de uma parte da canção que cantávamos praticamente todos os dias nas paradas do Corpo de Cadetes na Academia da Força Aérea, o hino do Aviador:

“Contato, companheiro!
Ao vento, sobranceiros,
Lancemos o roncar,
Da hélice a girar.”

— OK! Tudo normal, vamos fazer os cheques após a partida. — gritou o instrutor. O painel vibrava bastante e o vento parecia ter levado para fora da cabine tudo o que eu havia estudado! Eu estava em êxtase.
Pressões, rotação, instrumentos de navegação, luzes, comandos de vôo, etc. Eu acompanhava a cada procedimento tentando memorizar todos os detalhes. Obviamente eu sabia que teria que estudar muito depois. Era uma sobrecarga de informação, emoção e satisfação.
Depois da partida, acompanhando o giro acelerado da hélice e o consumo de combustível, todos os procedimentos passaram a ser executados em ritmo normal.
— Coloque os fones — disse Cardia com os cabelos alvoroçados
O som do motor ficou abafado pelo chiado do rádio. Colocamos a freqûencia da torre de controle.
— “Bauru, Papa Papa Kilo Bravo Sierra, acionado pronto para o taxi.
— Kilo Bravo Sierra, livre taxi, nenhum tráfego a reportar, informe para o ingresso.
Aquela nova “língua” também era uma das coisas que eu teria que dominar.
— Pressione os freios! Achou? Ficam aí sobre os pedais — disse Cardia.
— OK! Devo soltar o freio de estacionamento agora? — perguntei.
— O quê? Não estou ouvindo — ele disse — Coloque o microfone mais próximo da boca.
Eu ajustei o microfone, encostando-o aos meus lábios.
— Devo soltar o freio de estacionamento? — repeti, agora mais alto.
— Ainda não! Dê este sinal para o mecânico tirar o calço das rodas — ele disse, juntando os punhos fechados, esticando os polegares para os lados e depois separando as mãos seguindo as direções apontadas pelos polegares. — e continue segurando firme nos freios!
Eu olhei para a frente, procurando pelo mecânico. Lá estava ele, a cerca de três metros à direita do nariz do avião. Repeti o sinal de calços. Imediatamente ele veio para debaixo da asa direita. Senti uma batida, como se ele tivesse chutado um dos pneus da aeronave. Ele voltou para a frente do avião, ficando em uma posição mais lateral e deixando livre a passagem para o início do nosso taxi. Após repetir o sinal que eu havia feito, indicando que estávamos livres dos calços, ele colocou os dois braços para o alto e fez movimentos de chamar com as mãos alinhadas verticalmente. Era o sinal para começarmos a nos movimentar.
Soltei o freio de estacionamento e aliviei a pressão nos pedais. O pequeno avião respondeu rapidamente, começando a se deslocar para frente e balançando-se todo ao passar pelas irregularidades do piso do estacionamento.
O mecânico acenou e fez sinal de positivo. O instrutor pisou firme nos freios e soltou. Era um cheque padrão do sistema. O avião abaixou e levantou o nariz, como se estivesse cumprimentando e dando adeus ao mecânico.
— Olhe o movimento dos outros aviões — disse o instrutor — use os freios de forma diferencial para fazer curvas e ficar sobre aquela linha amarela. Mantenha a linha sob o seu pé direito. Faça correções curtas de freio. Evite acelerar o motor e freiar ao mesmo tempo. Mantenha a velocidade de um homem andando...
Eram muitas instruções. Mesmo assim, eu me sentia mais relaxado. Coloquei o cotovelo esquerdo sobre o beiral da cabine, como um motorista de caminhão. Aquele era o meu primeiro momento de “intimidade com o avião”. Olhava para todos os lados, procurando seguir à risca todas os comandos do instrutor e, ao mesmo tempo, aproveitando cada segundo daquela experiência: a vibração do motor sacudindo o painel e o canopi aberto, o vento no rosto, o cheiro do combustível, a visão da pista de pouso e do aeroporto por uma perspectiva que eu nunca tinha visto.
Paramos antes de cruzar a faixa de entrada na pista.
— Hora de testar o motor — disse Cardia.
Freio de estacionamento acionado, canopi fechado para evitar o barulho e o vento.
Aceleramos o motor Lycoming do nosso Uirapuru. Checamos motor, magnetos, mistura de combustível e controle da hélice. O aviãozinho mostrou sua força e disposição para voar, vibrando, abaixando o nariz e tentando partir, mas ainda acorrentado pelos freios.
Pressões, rotações, manetes, flaps, tudo pronto! A torre informou que não havia outros tráfegos no aeródromo. Soltamos os freios e entramos na pista. Ela era bem mais larga do que eu imaginava. Continuamos taxiando lentamente até a cabeceira 32. Já sobre as faixas do começo da pista, fizemos o giro de 180 graus e alinhamos com o eixo central.
Os prédios da cidade faziam parte de um cenário espinhoso sobre o horizonte liso de asfalto negro da pista. Será que conseguimos passar por cima deles? — eu pensava, preocupado.
— Vamos fazer a primeira decolagem juntos, OK? — disse Cardia. — Pronto?
Eu apenas balancei a cabeça afirmativamente. Olhos fixados na pista e a mão direita pronta para acelerar a manete de potência do motor. Uma pequena gota fria de suor escorreu sobre minha testa.
— Então vamos lá! — disse Cardia, batendo na minha mão sobre as manetes.
Acelerei o motor e soltei os freios. O coração batia forte e rápido. O pequeno avião roncou firme e começou a correr sobre a pista. As faixas que marcavam o seu centro começaram a ser engolidas pelo nariz da aeronave em ritmo crescente, quase de forma hipnótica, cada vez mais rápido. O mato baixo das laterais da pista, as luzes de marcação, tudo ia ficando para trás...
— Isso, mantenha o centro usando levemente os freios. Ele tende a sair para o lado devido ao torque. Vai segurando, com calma, no centro, sempre no centro — gritou o instrutor.
O manche vibrava em minha mão esquerda. Não sabia se o segurava com as duas mãos, ou se o mantinha apenas com a mão esquerda, enquanto a direita empurrava as manetes à frente. A medida que a velocidade do avião aumentava, ele tendia a perder ainda mais a reta, entrando em um tipo de oscilação lateral. Meus comandos para mante-lo no eixo pareciam atrasados ou desincronizados com o movimento.
— Isso, conserte a reta com calma. Primeiro pare o movimento de sair de lado, depois, calmamente volte para o centro — dizia Cardia, com uma mão no manche e outra sobre o painel. — você vê a velocidade? Já podemos decolar.
A aeronave já estava leve sobre a pista, quicando como se implorando para sair do chão.
Ele puxou o manche levemente e levantou o nariz branco do avião. Eu acompanhei o movimento do comando, agora com as duas mãos suando e apertando o manche a ponto de ficarem brancas as dobras dos meus dedos.
Quando passamos pela entrada da pista e à frente dos hangares do aeroclube, já estávamos fora do solo. Vi o estacionamento e o prédio principal ficando para trás e para baixo.
— Mantenha o nariz. Isso! Nivele as asas. Isso! Relaxe!
Ele recolheu os flaps, apertando o botão de destravar e abaixando lentamente a alavanca que parecia um freio de mão de automóvel entre os assentos. Depois reduziu a rotação do motor e ajustou-se melhor na cadeira.
— Curva à esquerda agora! — ele fez o movimento de curva imitando um avião com a mão. — Continue subindo. Mantenha o nariz no horizonte. Mantenha a velocidade. Use o compensador para reduzir a força no manche....
Mesmo com a atenção acima do máximo, as costas descoladas do encosto da cadeira, os olhos procurando avidamente por referências no nariz e as mãos soldadas ao manche, para mim, a sensação era como se eu estivesse em um sonho, ou um simulador.
Nada parecia real. Tudo era fantasticamente maravilhoso. Eu estou voando!!!!! — eu gritava nos meus pensamentos!
O ruído do motor, a vibração nos comandos, a paisagem...Ah! aquela paisagem inesquecível!
Os prédios ficaram para trás. À nossa frente havia o azul e algumas poucas nuvens. Lá embaixo, plantações verdes em diferentes tonalidades, todas geometricamente desenhadas entre rios e estradas. Pequenos aglomerados de casas. Cidades, lagos e alguns focos de fumaça no horizonte distante. Tudo era muito mais bonito do que eu jamais havia imaginado nos meus tempos de menino, quando eu assistia às decolagens com o rosto grudado na cerca do aeroclube.
Um sorriso acompanhado de uma lágrima surgiram no meu rosto. Eu me sentia “em contato” com o avião, com a natureza, com o ar, com a Terra, com os meus sonhos do passado e as minhas esperanças de futuro.
O aviãozinho continuava firme e forte, satisfeito no seu ambiente de libertade, subindo e subindo. Nessa viagem, eu era, ao mesmo tempo, piloto, passageiro, aluno, menino, sonhador e feliz.
Conforme subíamos eu ficava ainda mais à vontade com a situação. Eu estava me entendendo bem com aquele novo amigo alado que, naquele instante, me apresentava a um mundo completamente novo. Eu me sentia seguro junto a ele, como se ele me envolvesse em um abraço carinhoso, fraterno e protetor, algo que nos transformava em uma só criatura, gerada por Deus, para voar. Anos mais tarde, já voando aeronaves de grande performance na FAB, eu aprendi o significado da expressão comumente usada entre pilotos: “vestir as asas do avião”. Era exatamente aquilo que eu estava sentindo durante aquele primeiro vôo, e é exatamente essa fusão, entre a mente do piloto e as asas da máquina, que faz o vôo ser uma atividade tão apaixonante. Ali, naquele momento, eu decidi que eu estava no caminho certo, a essência da minha vida seria construída, como pessoa e como profissional, voando acima da superfície do Planeta.
Hoje em dia, muitas pessoas, jovens na maioria, costumam me perguntar como eles podem ter certeza a respeito da carreira a seguir. Eu respondo simplesmente: “Esqueça a lógica, dê uma chance ao seu sentimento e ouça ao seu coração!”
Era exatamente aquilo que eu estava fazendo naquele dia, a sete mil pés de altura!
Prosseguimos no vôo segundo os os nossos planos do “briefing”. Vôo nivelado, algumas curvas de alta, planeios com mudanças de configuração de flaps, arremetidas simuladas, subidas, etc. Fizemos até algumas pernas de “oito preguiçoso” para melhorar a minha coordenação e suavidade nos comandos. Durante aquelas manobras, o horizonte dançava suavemente à minha frente, como a batuta de um maestro entre acordes verdes e azuis.
Depois de trinta e cinco minutos de vôo, voltamos para o aeródromo. O vento havia mudado. O pouso seria feito na pista quatorze. Isto é, deveríamos nos aproximar no sentido do centro da cidade para a rodovia Marechal Rondon. A idéia era realizar alguns pousos para treinamento. Na linguagem dos pilotos, realizar “toques e arremetidas”.
Entramos no tráfego na altitude correta. Havia outra aeronave treinando. Era o Cessna 152. A torre perguntou se “tínhamos visual com ele”.
— Afirmativo — respondeu Cardia.
Eu ainda a procurava por todos os lados.
O instrutor apontou para a aeronave que estava logo abaixo do horizonte, na longa final para pouso. Com esforço consegui encontrá-la. Sem referência de experiências anteriores de ver uma aeronave em pleno vôo, ela me parecia deslocar-se muito mais rápido do que eu imaginara. Também era muito pequena e extremamente fácil de desaparecer de vista, camuflada, com suas cores branca e azul, no meio da paisagem urbana da cidade.
— OK! Agora estou vendo! — eu disse, fazendo sinal de positivo.
— Gire base atrás dele no tráfego da final!
Aquilo para mim soou como uma mistura de Chinês com Grego.
— Como eu faço isso? — perguntei.
— Não se preocupe. Mantenha a proa nesta altitude e espere ele passar pelo seu través, depois curve para a base atrás dele, configure para pouso e entre na curta final.
Outra frase estranha, agora em Mandarin. — pensei.
Mantive a reta e a altitude como instruido. Estávamos voando paralelos ao eixo da pista, na chamada “perna do vento” do circuito de tráfego. O afastamento lateral da pista era mantido por referência visual, basicamente mantendo-se a ponta da asa tangenciando a pista, do ponto de vista da cabine. Quando o Cessna cruzou a nossa perpendicular, voando no sentido oposto, Cardia reduziu o motor, e começou a curvar, em uma descida acentuada na direção da cabeceira.
— Vai me acompanhando neste primeiro pouso — disse o instrutor.
No meio da curva, controlando o avião de forma a se alinhar com o eixo da pista e com a rampa adequada, ele falava com a torre enquanto ia colocando a manete de passo da hélice toda à frente, ajustando o compensador, fechando o aquecimento do carburador, baixando os flaps, puxando a alavanca estilo “freio de automóvel” para a posição máxima e também verificando se não havia nenhum outro avião desconhecido voando no nosso tráfego, que pudesse interferir no nosso caminho. Tudo ao mesmo tempo!
— Kilo Bravo Sierra na base, pista 14, toca e arremete.
Eu tentava acompanhar a tudo, não sabendo muito bem para onde olhar. Eram muitas informações ao mesmo tempo. Certamente preciso treinar isso!
A aproximação da pista era um tanto assustadora quando vista daquele ângulo. Com o motor reduzido para “idle” (mínimo), íamos planando e mantendo a velocidade na final. Havia uma turbulência moderada naquele horário. Ele corrigia constantemente o nivelamento das asas e mantinha o alinhamento da pista usando o manche e os pedais em movimentos curtos e precisos.
Em um certo instante ele levantou a asa direita bruscamente e logo depois voltou para as correções de atitude menores e frequentes.
— Você viu o urubu? — ele perguntou.
Eu não vira absolutamente nada! Meus olhos estavam super abertos, mas eram tantas coisas para ver em tão pouco tempo. A pista agora parecia curta e estreita. Os prédios passavam rapidamente lá embaixo, os instrumentos pareciam normais. O ruído também. A descida continuava íngreme e agitada. Já dava para ver até as pessoas dentro dos carros na rua transversal antes da cabeceira. Alguns estavam estacionados, assistindo ao pouso, próximos à cerca do aeroclube. A pista crescia rapidamente em perspectiva, a medida em que nos aproximávamos velozmente do descampado no seu prolongamento.
As faixas brancas pintadas e alinhadas como um cruzamento de pedestres marcando o início da pista, desapareceram rapidamente sob o nariz do avião. A pista agora voltava a parecer extremamente larga. A outra cabeceira já se misturava no limite do horizonte próximo visível à nossa frente. A uma determinada altura do solo, a misteriosa altura de arredondamento, ele segurou o nariz mais alto, puxando o manche suavemente para trás. Eu já não conseguia ver o final da pista. Alguns segundo depois, os pneus dos trens principais, sob as asas, tocaram o solo, balançando o avião e fazendo um barulho como se tivéssemos pousado sobre um cachorro que gritou assustado.
Após o toque, ainda corremos sobre a pista com o pneu de nariz, a bequilha, fora do solo por uma boa distância. Depois, suavemente, ele colocou a bequilha no solo, recolheu os flaps para a posição intermediária de decolagem, ajustou o compensador e disse:
— Tá contigo! Agora é sua vez! — colocou a manete de potência toda à frente e soltou o manche.
Eu continuei com os olhos fixados na pista, cuidando para manter a reta durante a curta distância de corrida até sairmos do chão novamente. Ele me avisou do momento de puxar o manche.
Voltei ao circuito de tráfego na altitude correta e repeti o que ele havia feito. Ele me auxiliou durante outras três aproximações, reduzindo a sua participação nos comandos a cada pouso. No meu quarto pouso, eu tive a impressão de estar solo. O pouso não foi bom, mas a sensação foi ótima!
Finalmente, depois de cinco pousos realizados, muita tensão e suor, o vôo terminou. Taxiamos de volta para o estacionamento com o canopi aberto. O vento ajudava a refrescar as idéias. Seguimos em silêncio. Milhares de imagens povoavam minha mente. Entre elas, naquele momento, estava em destaque a visão daquele mesmo ponto da cerca do estacionamento do aeroclube, onde tantas vezes eu havia visitado, de bicicleta, trazendo graxa e sonhos. Agora eu podia ver o mesmo sonho, mas já estava do lado de cá da cerca. Uma satisfação enorme tomou conta de mim.
Chegamos ao piso irregular do estacionamento, onde havia uma pequena subida a ser vencida antes de chegar ao ponto final de parada. Sem embalo inicial, tive que usar bastante o motor para superá-la. Cortamos o motor, voltando a fazer todos os procedimentos pausadamente. Aliás, agora eles pareciam muito mais familiares.
A parada da hélice foi acompanhada de uma oscilação curta e uma última explosão abafada no escapamento do motor. Missão cumprida! Tirei os fones de ouvido., ainda com zunido constante na minha cabeça. Descemos da aeronave e fomos para o hangar conversando sobre o vôo. Na caminhada, de tempos em tempos eu olhava para trás, para a imagem daquele pequeno avião ficando ali, pousado, na paisagem do aeroclube.
Até hoje, mesmo depois de pilotar algumas das maiores máquinas voadoras já inventadas pelo homem, dentro e fora da atmosfera do Planeta, 25 vezes mais rápido que a velocidade do som, eu constantemente olho para trás, recordando com carinho daquele dia, daquele primeiro vôo, daquele pequeno aeroclube da minha querida cidade de Bauru, ouvindo às palavras do meu instrutor e vendo aquele aviãozinho, guerreiro, meu amigo alado branco e azul, brilhando no cenário da minha história, estacionado entre os meus sonhos de menino e as minhas realizações de homem.
“Ânimo jovem! Por este caminho se chega aos astros!”
“A la Chasse!”

Marcos Pontes
Colunista, conferencista, pesquisador, professor e primeiro astronauta profissional lusófono a orbitar o planeta, de família humilde, começou como eletricista aprendiz da RFFSA aos 14 anos, em Bauru (SP), para se tornar oficial aviador da Força Aérea Brasileira (FAB), piloto de caça, instrutor, líder de esquadrilha, engenheiro aeronáutico formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), piloto de testes de aeronaves do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), mestre em Engenharia de Sistemas graduado pela Naval Postgraduate School (NPS USNAVY, Monterey - CA).
A reprodução deste artigo é permitida desde que seja na íntegra e que seja citada a fonte: www.marcospontes.net