Cheguei 08:00 em ponto. Uma hora antes do horário combinado
para o “briefing”. Céu claro, azul. Apenas
algumas nuvens espalhadas lá e cá, só
para quebrar a monotonia monocromática e melhorar,
ainda mais, o cenário. Sobre a velha torre de controle
eu podia ver a “biruta” balançando murcha
na brisa, como uma grande meia colorida na ponta de uma antena.
Vento calmo. Isso é bom!
A arquitetura “art-decó” do aeroclube,
projetado por engenheiros da Noroeste do Brasil, e fundado
em 1939, era exatamente como imaginamos que deveria ser um
pequeno aeroporto do interior das estórias da aviação.
De um lado do estacionamento, os antigos hangares de madeira,
onde foram escritos capítulos importantes da história
da construção de planadores no Brasil. Do outro
lado, o prédio principal, branco, retangular, que se
estendia com os seus dois andares pelo comprimento de uma
quadra de basquete. A parte superior da fachada do prédio,
alinhada com a pista de pouso, era dominada por janelas de
vidro ao longo de todo o seu comprimento. Logo abaixo das
janelas, escrito em letras azuis de concreto em relevo: “AERO
CLUBE DE BAURU”.
Estacionei o carro voltado para a pista de pouso e fiquei
observando a história por alguns minutos. Mistura de
apreensão e felicidade.
Finalmente, o meu primeiro vôo!
Quantas e quantas vezes eu já havia estado ali, exatamente
no mesmo lugar. Menino suado, roupas cheirando à graxa,
empoeirado da jornada de areia e labuta. A bicicleta encostada
na cerca, e o rosto grudado na grade de arame que me separava
dos aviões, dos pilotos, e dos meus sonhos.
Peguei minha caderneta de anotações, respirei
fundo, tranquei o carro. Vamos lá! Chegou a hora!
Eu deveria encontrar com o instrutor na hangar que ficava
atrás do prédio principal.
Na frente do prédio principal havia um pequeno jardim
com bancos de concreto e plantas bem cortadas, sempre bem
freqüentadas por pardais e tico-ticos. Conforme passava
pelo jardim, eu me lembrava das vezes que sentei naqueles
mesmos bancos, sonhando, planejando como ser piloto, um dia,
talvez…
No térreo, ficavam algumas instalações
de serviço, o pequeno saguão de entrada com
a escada para o andar superior, e uma lanchonete com mesas
espalhadas até o jardim, onde os pilotos costumavam
sentar no final da tarde para tomar uma cerveja e conversar
sobre os vôos do dia. No piso superior ficavam as salas
de aula, as salas de administração e, bem no
canto, com a melhor visão da pista, a sala de tráfego.
A torre de controle se destacava do restante da construção.
Era como se um cômodo quadrado do centro do prédio
tivesse sido esticado verticalmente por quatro andares, deixando,
em cada andar, algumas janelas e uma varanda externa cercada
ao longo de todo o seu perímetro. No topo da torre,
uma plantação de aparelhos de meteorologia e
antenas de rádio.
Pois é! Meio caminho andado. Hoje será um grande
dia!
No ano anterior eu havia entrado na Academia da Força
Aérea, a AFA, em Pirassununga. Parte do meu sonho tinha
sido realizada. De eletricista aprendiz da Rede Ferroviária,
estudando o vestibular com livros sujos de graxa, eu me transformei
em um Cadete Aviador da Força Aérea! Contudo,
já no final do primeiro ano de curso na AFA, eu ainda
não tinha entrado em um avião. Naquela época,
em 1981, o curso da Academia iniciava com muitas horas de
aula, e nenhuma hora de vôo. A instrução
aérea começaria apenas no ano seguinte, e o
atrito seria alto. Começaríamos o ano com cerca
de duzentos cadetes. A expectativa era que esse número
fosse reduzido para cento e cinqüenta no final da instrução
aérea do segundo ano. Os desligamentos em vôo
eram freqüentes. Os cadetes aviadores desligados em vôo
podiam tentar uma vaga nos cursos de infantaria ou de intendência.
Se não houvesse lugar, a alternativa era a porta da
rua. Isso era inaceitável para mim!
Portanto, era preciso trabalhar uma solução
de forma antecipada e sistemática. Decidi fazer algumas
horas de vôo no aeroclube, aproveitando os finais de
semana em Bauru, antes de começar a instrução
de vôo na AFA. O meu plano era identificar e corrigir
possíveis dificuldades em vôo muito antes do
meu primeiro “briefing” militar. Isso certamente
aumentaria minha probabilidade de sucesso no curso de aviador!
As horas de vôo eram caras, mas eu havia economizado
parte do meu pequeno soldo de Cadete durante todo o ano, justamente
para isso. Eu conseguiria pagar por algumas horas, pelo menos.
Ao chegar no hangar, para minha surpresa, o instrutor já
aguardava por mim.
– Bom dia! Você deve ser o Marcos, correto? Meu
nome é Cardia, eu serei o seu instrutor hoje.
– Muito prazer! – eu disse.
Eu já tinha estado ali outras vezes, quando ajudava
a empurrar as aeronaves do aeroclube, mas aquele dia era diferente.
A estrutura de madeira do hangar, o teto curvado, até
o cheiro de gasolina de aviação parecia mais
forte, mais gostoso.
– Você já voou alguma vez? – perguntou
Cardia.
– Não, é a primeira vez...
Eu me sentia um tanto constrangido e inseguro. O instrutor,
experiente, olhou para mim de um modo tranqüilo e interrompeu:
– Não se preocupe! Vamos os cheques com calma,
sem pressa. Pergunte tudo o que você não entender.
OK? – e continuou – Temos tempo até a decolagem.
Vamos aproveitar e dar uma olhadinha no avião.
Difícil de acreditar. Aqui estamos nós, eu e
o instrutor, dentro do hangar do Aeroclube de Bauru, conversando
sobre o meu primeiro vôo! – eu pensava, observando
o instrutor procurar por alguma coisa na mesinha.
Ele pegou um livrinho da gaveta e caminhamos juntos pelo piso
irregular do estacionamento da frente do hangar, na direção
de dois aviões que estavam sendo abastecidos, um Cessna
152, e um Uirapuru.
– Você pediu para voar no KBS, certo? –
perguntou Cardia.
– Sim. Este ano eu começo a voar o T-23 na Academia.
Eu preciso me adaptar ao avião antes dos vôos
de instrução militar.
– Entendi. O nosso Uirapuru é um T-23 civil.
Tem algumas diferenças nos comandos, no interior, e
algumas outras coisinhas, mas sabendo voar este aqui, você
vai tirar de letra o curso da Academia.
O PP-KBS era um Uirapuru 122B, versão civil do T-23
usado para a instrução básica da AFA
naquele tempo. À medida que nos aproximávamos
do avião, dava para ver mais dos seus detalhes, assim
como do movimento de preparação das aeronaves
para mais um dia de instrução. O caminhão
de abastecimento, o cheiro de combustível que vinha
com o vento, os cheques de pré-vôo, o meu coração
agitado. O avião era branco com faixas azuis, cores
bem diferentes do laranja característico dos “Zarapas”
da AFA. Zarapa era o apelido que os T-23 ganharam na Força
Aérea, ainda no tempo em que esses aviões voavam
em Natal, RN. Não sei a origem do nome, mas, por alguma
razão, ele se encaixava bem para aquele pequeno e robusto
avião fabricado pela Aerotec de São José
dos Campos, SP.
O abastecimento terminou. O funcionário, fechou a tampa
sobre a asa esquerda, recolheu a mangueira enrolada na parte
traseira do caminhão e caminhou em nossa direção
escrevendo no bloco de notas sobre uma prancheta suja de graxa.
– Bom dia! O senhor pode assinar o abastecimento? Entrou
87 litros. – disse o abastecedor.
Cardia assinou a nota. O funcionário destacou as vias,
entregou uma para o instrutor, virou-se para mim e, com um
sorriso irônico, perguntou:
– Novo aluno?
– Pois é, meu primeiro vôo. Você
abasteceu direito esse negócio? Olha lá! –
eu disse, tentando disfarçar o nervosismo.
Ele sorriu – Fique tranqüilo! – subiu no
caminhão e partiu.
Cardia pegou o livrinho que trouxera do hangar e disse:
– Este aqui é o check-list do KBS. Aqui estão
os procedimentos normais e de emergência. Você
vê que é um aviãozinho simples, mas tem
alguns pontos importantes para observarmos. Vamos fazer uma
inspeção externa e eu vou mostrando os detalhes.
Seguimos pela inspeção, circulando a aeronave
no sentido horário. Motor, óleo, tampas fechadas
corretamente, tubo de “pitot”, pneus, tomadas
estáticas, calços, fitas, freios, travas, superfícies
de comando, combustível, drenagem, etc., etc.
O pequeno avião parecia um pássaro, feliz, pronto,
ansioso para o seu primeiro vôo do dia.
Depois de cerca de meia hora ao redor da aeronave, seguimos
para a sala de tráfego onde preenchemos o “plano
de vôo” e checamos a previsão da meteorologia.
Tudo feito, tudo perfeito.
Retornamos para o hangar. Cardia pegou o relatório
do avião de um escaninho sobre a mesa. É nesse
documento que são registrados todos os vôos e
os serviços de manutenção feitos na aeronave.
Ele olhou calmamente cada anotação feita pelos
pilotos e mecânicos e disse:
– Isto aqui é muito importante. Pela análise
do que escreveram nesse relatório, podemos saber o
que não está funcionando bem no avião,
ou mesmo quais são os seus problemas crônicos
de “saúde”. Cada avião é
como uma pessoa, você tem que entender suas manias e
peculiaridades. Precisamos prestar muita atenção
nisso.
Interessante, aquele foi um conselho que usei, e passei para
todos os meus alunos, ao longo de toda a minha carreira. Aliás,
essa simples observação já me salvou
de graves acidentes.
Caminhamos para o avião novamente. Desta vez ele foi
falando sobre o que faríamos no vôo. Cada detalhe,
cada cuidado, o que eu deveria fazer, o que eu deveria olhar,
o que eu deveria esperar. Ouvi com toda a atenção
do mundo. Memorizei o que pude. Difícil seria lembrar
tudo aquilo em vôo.
Repetimos a inspeção externa. Agora seguindo
exatamente o check-list, e comigo fazendo todas as inspeções
e comentários. Ele ia corrigindo e fazendo algumas
observações extras.
Entramos no avião. A amarração (colocação
dos cintos de segurança) e o ajuste do assento foram
feitos com cuidado.
– Você esta vendo o nariz do avião? –
ele perguntou – é importante que você se
sinta confortável, sem ficar solto no assento, mas
sem ter que se esticar todo para ver o nariz, ou para atuar
em algum comando.
Depois de amarrado ao assento, o avião parecia maior
do que eu imaginava. Estranho como essa sensação
tem a ver com a nossa percepção de “falta
de controle” sobre a situação.
Na minha interpretação e insegurança
do momento, o painel do avião se multiplicou em instrumentos,
botões, interruptores, luzes e ponteiros. Logicamente,
eu já tinha uma boa noção do que eram,
assim como da função da maioria deles. Na Academia,
eu consegui um manual de vôo emprestado. Era a minha
leitura de cabeceira, todas as noites, antes de dormir. Se
eu fechasse os olhos eu podia até dizer em que página,
e mesmo em qual lugar na página, estava um determinado
assunto ou sistema. Mas ali, na prática, a mente lutava
para manter tudo em perspectiva. Calma! Você conhece
isso, você estudou. Pense com lógica. Respire!
Calma!
Com concentração, acompanhei o check-list para
todas as inspeções antes da partida. Não
eram tantas assim!
– OK! Tudo pronto para a partida. Vamos lá, vamos
nos transformar em um pássaro! – disse Cardia.
Linha por linha todos os procedimentos antes da partida foram
executados. Faltava apenas um: o contato.
¬ Cardia bloqueou o interruptor:
— Antes de girar a hélice, verifique se não
há nenhum obstáculo.
Eu parei, tirei os olhos fixados do painel, levantei a cabeça,
observei à nossa volta, uma, duas vezes, nada. Não
havia nenhuma pessoa ou equipamento próximos da hélice,
apenas um piloto fazendo a inspeção externa
do Cessna 152 a uns dez metros da nossa asa direita. Bem mais
distante, eu podia ver duas crianças grudadas na cerca
do aeroclube assistindo a nossa partida. A próxima
geração! — eu pensei
— Acho que está tudo livre — eu disse.
— Então grite “livre!”, e vamos lá!
O motor de partida agonizou as primeiras duas ou três
voltas da hélice. A pequena aeronave sacudiu cada parafuso
quando o motor pegou, girando a hélice vigorosamente
e varrendo a cabine com o vento de um furação.
O roncar constante do motor modulado pelo ruído cadenciado
da aerodinâmica do ar que passava pelas pás da
hélice eram como uma sinfonia para meus ouvidos, tanto
tempo ansiosos por aquele momento. A medida que o giro do
motor estabilizava, o KBS abaixava o nariz, forçando
os freios e os calços amarelos colocados nos pneus.
Ele queria partir, alçar os ares!
Lembrei-me de uma parte da canção que cantávamos
praticamente todos os dias nas paradas do Corpo de Cadetes
na Academia da Força Aérea, o hino do Aviador:
“Contato,
companheiro!
Ao vento, sobranceiros,
Lancemos o roncar,
Da hélice a girar.”
—
OK! Tudo normal, vamos fazer os cheques após a partida.
— gritou o instrutor. O painel vibrava bastante e o
vento parecia ter levado para fora da cabine tudo o que eu
havia estudado! Eu estava em êxtase.
Pressões, rotação, instrumentos de navegação,
luzes, comandos de vôo, etc. Eu acompanhava a cada procedimento
tentando memorizar todos os detalhes. Obviamente eu sabia
que teria que estudar muito depois. Era uma sobrecarga de
informação, emoção e satisfação.
Depois da partida, acompanhando o giro acelerado da hélice
e o consumo de combustível, todos os procedimentos
passaram a ser executados em ritmo normal.
— Coloque os fones — disse Cardia com os cabelos
alvoroçados
O som do motor ficou abafado pelo chiado do rádio.
Colocamos a freqûencia da torre de controle.
— “Bauru, Papa Papa Kilo Bravo Sierra, acionado
pronto para o taxi.
— Kilo Bravo Sierra, livre taxi, nenhum tráfego
a reportar, informe para o ingresso.
Aquela nova “língua” também era
uma das coisas que eu teria que dominar.
— Pressione os freios! Achou? Ficam aí sobre
os pedais — disse Cardia.
— OK! Devo soltar o freio de estacionamento agora? —
perguntei.
— O quê? Não estou ouvindo — ele
disse — Coloque o microfone mais próximo da boca.
Eu ajustei o microfone, encostando-o aos meus lábios.
— Devo soltar o freio de estacionamento? — repeti,
agora mais alto.
— Ainda não! Dê este sinal para o mecânico
tirar o calço das rodas — ele disse, juntando
os punhos fechados, esticando os polegares para os lados e
depois separando as mãos seguindo as direções
apontadas pelos polegares. — e continue segurando firme
nos freios!
Eu olhei para a frente, procurando pelo mecânico. Lá
estava ele, a cerca de três metros à direita
do nariz do avião. Repeti o sinal de calços.
Imediatamente ele veio para debaixo da asa direita. Senti
uma batida, como se ele tivesse chutado um dos pneus da aeronave.
Ele voltou para a frente do avião, ficando em uma posição
mais lateral e deixando livre a passagem para o início
do nosso taxi. Após repetir o sinal que eu havia feito,
indicando que estávamos livres dos calços, ele
colocou os dois braços para o alto e fez movimentos
de chamar com as mãos alinhadas verticalmente. Era
o sinal para começarmos a nos movimentar.
Soltei o freio de estacionamento e aliviei a pressão
nos pedais. O pequeno avião respondeu rapidamente,
começando a se deslocar para frente e balançando-se
todo ao passar pelas irregularidades do piso do estacionamento.
O mecânico acenou e fez sinal de positivo. O instrutor
pisou firme nos freios e soltou. Era um cheque padrão
do sistema. O avião abaixou e levantou o nariz, como
se estivesse cumprimentando e dando adeus ao mecânico.
— Olhe o movimento dos outros aviões —
disse o instrutor — use os freios de forma diferencial
para fazer curvas e ficar sobre aquela linha amarela. Mantenha
a linha sob o seu pé direito. Faça correções
curtas de freio. Evite acelerar o motor e freiar ao mesmo
tempo. Mantenha a velocidade de um homem andando...
Eram muitas instruções. Mesmo assim, eu me sentia
mais relaxado. Coloquei o cotovelo esquerdo sobre o beiral
da cabine, como um motorista de caminhão. Aquele era
o meu primeiro momento de “intimidade com o avião”.
Olhava para todos os lados, procurando seguir à risca
todas os comandos do instrutor e, ao mesmo tempo, aproveitando
cada segundo daquela experiência: a vibração
do motor sacudindo o painel e o canopi aberto, o vento no
rosto, o cheiro do combustível, a visão da pista
de pouso e do aeroporto por uma perspectiva que eu nunca tinha
visto.
Paramos antes de cruzar a faixa de entrada na pista.
— Hora de testar o motor — disse Cardia.
Freio de estacionamento acionado, canopi fechado para evitar
o barulho e o vento.
Aceleramos o motor Lycoming do nosso Uirapuru. Checamos motor,
magnetos, mistura de combustível e controle da hélice.
O aviãozinho mostrou sua força e disposição
para voar, vibrando, abaixando o nariz e tentando partir,
mas ainda acorrentado pelos freios.
Pressões, rotações, manetes, flaps, tudo
pronto! A torre informou que não havia outros tráfegos
no aeródromo. Soltamos os freios e entramos na pista.
Ela era bem mais larga do que eu imaginava. Continuamos taxiando
lentamente até a cabeceira 32. Já sobre as faixas
do começo da pista, fizemos o giro de 180 graus e alinhamos
com o eixo central.
Os prédios da cidade faziam parte de um cenário
espinhoso sobre o horizonte liso de asfalto negro da pista.
Será que conseguimos passar por cima deles? —
eu pensava, preocupado.
— Vamos fazer a primeira decolagem juntos, OK? —
disse Cardia. — Pronto?
Eu apenas balancei a cabeça afirmativamente. Olhos
fixados na pista e a mão direita pronta para acelerar
a manete de potência do motor. Uma pequena gota fria
de suor escorreu sobre minha testa.
— Então vamos lá! — disse Cardia,
batendo na minha mão sobre as manetes.
Acelerei o motor e soltei os freios. O coração
batia forte e rápido. O pequeno avião roncou
firme e começou a correr sobre a pista. As faixas que
marcavam o seu centro começaram a ser engolidas pelo
nariz da aeronave em ritmo crescente, quase de forma hipnótica,
cada vez mais rápido. O mato baixo das laterais da
pista, as luzes de marcação, tudo ia ficando
para trás...
— Isso, mantenha o centro usando levemente os freios.
Ele tende a sair para o lado devido ao torque. Vai segurando,
com calma, no centro, sempre no centro — gritou o instrutor.
O manche vibrava em minha mão esquerda. Não
sabia se o segurava com as duas mãos, ou se o mantinha
apenas com a mão esquerda, enquanto a direita empurrava
as manetes à frente. A medida que a velocidade do avião
aumentava, ele tendia a perder ainda mais a reta, entrando
em um tipo de oscilação lateral. Meus comandos
para mante-lo no eixo pareciam atrasados ou desincronizados
com o movimento.
— Isso, conserte a reta com calma. Primeiro pare o movimento
de sair de lado, depois, calmamente volte para o centro —
dizia Cardia, com uma mão no manche e outra sobre o
painel. — você vê a velocidade? Já
podemos decolar.
A aeronave já estava leve sobre a pista, quicando como
se implorando para sair do chão.
Ele puxou o manche levemente e levantou o nariz branco do
avião. Eu acompanhei o movimento do comando, agora
com as duas mãos suando e apertando o manche a ponto
de ficarem brancas as dobras dos meus dedos.
Quando passamos pela entrada da pista e à frente dos
hangares do aeroclube, já estávamos fora do
solo. Vi o estacionamento e o prédio principal ficando
para trás e para baixo.
— Mantenha o nariz. Isso! Nivele as asas. Isso! Relaxe!
Ele recolheu os flaps, apertando o botão de destravar
e abaixando lentamente a alavanca que parecia um freio de
mão de automóvel entre os assentos. Depois reduziu
a rotação do motor e ajustou-se melhor na cadeira.
— Curva à esquerda agora! — ele fez o movimento
de curva imitando um avião com a mão. —
Continue subindo. Mantenha o nariz no horizonte. Mantenha
a velocidade. Use o compensador para reduzir a força
no manche....
Mesmo com a atenção acima do máximo,
as costas descoladas do encosto da cadeira, os olhos procurando
avidamente por referências no nariz e as mãos
soldadas ao manche, para mim, a sensação era
como se eu estivesse em um sonho, ou um simulador.
Nada parecia real. Tudo era fantasticamente maravilhoso. Eu
estou voando!!!!! — eu gritava nos meus pensamentos!
O ruído do motor, a vibração nos comandos,
a paisagem...Ah! aquela paisagem inesquecível!
Os prédios ficaram para trás. À nossa
frente havia o azul e algumas poucas nuvens. Lá embaixo,
plantações verdes em diferentes tonalidades,
todas geometricamente desenhadas entre rios e estradas. Pequenos
aglomerados de casas. Cidades, lagos e alguns focos de fumaça
no horizonte distante. Tudo era muito mais bonito do que eu
jamais havia imaginado nos meus tempos de menino, quando eu
assistia às decolagens com o rosto grudado na cerca
do aeroclube.
Um sorriso acompanhado de uma lágrima surgiram no meu
rosto. Eu me sentia “em contato” com o avião,
com a natureza, com o ar, com a Terra, com os meus sonhos
do passado e as minhas esperanças de futuro.
O aviãozinho continuava firme e forte, satisfeito no
seu ambiente de libertade, subindo e subindo. Nessa viagem,
eu era, ao mesmo tempo, piloto, passageiro, aluno, menino,
sonhador e feliz.
Conforme subíamos eu ficava ainda mais à vontade
com a situação. Eu estava me entendendo bem
com aquele novo amigo alado que, naquele instante, me apresentava
a um mundo completamente novo. Eu me sentia seguro junto a
ele, como se ele me envolvesse em um abraço carinhoso,
fraterno e protetor, algo que nos transformava em uma só
criatura, gerada por Deus, para voar. Anos mais tarde, já
voando aeronaves de grande performance na FAB, eu aprendi
o significado da expressão comumente usada entre pilotos:
“vestir as asas do avião”. Era exatamente
aquilo que eu estava sentindo durante aquele primeiro vôo,
e é exatamente essa fusão, entre a mente do
piloto e as asas da máquina, que faz o vôo ser
uma atividade tão apaixonante. Ali, naquele momento,
eu decidi que eu estava no caminho certo, a essência
da minha vida seria construída, como pessoa e como
profissional, voando acima da superfície do Planeta.
Hoje em dia, muitas pessoas, jovens na maioria, costumam me
perguntar como eles podem ter certeza a respeito da carreira
a seguir. Eu respondo simplesmente: “Esqueça
a lógica, dê uma chance ao seu sentimento e ouça
ao seu coração!”
Era exatamente aquilo que eu estava fazendo naquele dia, a
sete mil pés de altura!
Prosseguimos no vôo segundo os os nossos planos do “briefing”.
Vôo nivelado, algumas curvas de alta, planeios com mudanças
de configuração de flaps, arremetidas simuladas,
subidas, etc. Fizemos até algumas pernas de “oito
preguiçoso” para melhorar a minha coordenação
e suavidade nos comandos. Durante aquelas manobras, o horizonte
dançava suavemente à minha frente, como a batuta
de um maestro entre acordes verdes e azuis.
Depois de trinta e cinco minutos de vôo, voltamos para
o aeródromo. O vento havia mudado. O pouso seria feito
na pista quatorze. Isto é, deveríamos nos aproximar
no sentido do centro da cidade para a rodovia Marechal Rondon.
A idéia era realizar alguns pousos para treinamento.
Na linguagem dos pilotos, realizar “toques e arremetidas”.
Entramos no tráfego na altitude correta. Havia outra
aeronave treinando. Era o Cessna 152. A torre perguntou se
“tínhamos visual com ele”.
— Afirmativo — respondeu Cardia.
Eu ainda a procurava por todos os lados.
O instrutor apontou para a aeronave que estava logo abaixo
do horizonte, na longa final para pouso. Com esforço
consegui encontrá-la. Sem referência de experiências
anteriores de ver uma aeronave em pleno vôo, ela me
parecia deslocar-se muito mais rápido do que eu imaginara.
Também era muito pequena e extremamente fácil
de desaparecer de vista, camuflada, com suas cores branca
e azul, no meio da paisagem urbana da cidade.
— OK! Agora estou vendo! — eu disse, fazendo sinal
de positivo.
— Gire base atrás dele no tráfego da final!
Aquilo para mim soou como uma mistura de Chinês com
Grego.
— Como eu faço isso? — perguntei.
— Não se preocupe. Mantenha a proa nesta altitude
e espere ele passar pelo seu través, depois curve para
a base atrás dele, configure para pouso e entre na
curta final.
Outra frase estranha, agora em Mandarin. — pensei.
Mantive a reta e a altitude como instruido. Estávamos
voando paralelos ao eixo da pista, na chamada “perna
do vento” do circuito de tráfego. O afastamento
lateral da pista era mantido por referência visual,
basicamente mantendo-se a ponta da asa tangenciando a pista,
do ponto de vista da cabine. Quando o Cessna cruzou a nossa
perpendicular, voando no sentido oposto, Cardia reduziu o
motor, e começou a curvar, em uma descida acentuada
na direção da cabeceira.
— Vai me acompanhando neste primeiro pouso — disse
o instrutor.
No meio da curva, controlando o avião de forma a se
alinhar com o eixo da pista e com a rampa adequada, ele falava
com a torre enquanto ia colocando a manete de passo da hélice
toda à frente, ajustando o compensador, fechando o
aquecimento do carburador, baixando os flaps, puxando a alavanca
estilo “freio de automóvel” para a posição
máxima e também verificando se não havia
nenhum outro avião desconhecido voando no nosso tráfego,
que pudesse interferir no nosso caminho. Tudo ao mesmo tempo!
— Kilo Bravo Sierra na base, pista 14, toca e arremete.
Eu tentava acompanhar a tudo, não sabendo muito bem
para onde olhar. Eram muitas informações ao
mesmo tempo. Certamente preciso treinar isso!
A aproximação da pista era um tanto assustadora
quando vista daquele ângulo. Com o motor reduzido para
“idle” (mínimo), íamos planando
e mantendo a velocidade na final. Havia uma turbulência
moderada naquele horário. Ele corrigia constantemente
o nivelamento das asas e mantinha o alinhamento da pista usando
o manche e os pedais em movimentos curtos e precisos.
Em um certo instante ele levantou a asa direita bruscamente
e logo depois voltou para as correções de atitude
menores e frequentes.
— Você viu o urubu? — ele perguntou.
Eu não vira absolutamente nada! Meus olhos estavam
super abertos, mas eram tantas coisas para ver em tão
pouco tempo. A pista agora parecia curta e estreita. Os prédios
passavam rapidamente lá embaixo, os instrumentos pareciam
normais. O ruído também. A descida continuava
íngreme e agitada. Já dava para ver até
as pessoas dentro dos carros na rua transversal antes da cabeceira.
Alguns estavam estacionados, assistindo ao pouso, próximos
à cerca do aeroclube. A pista crescia rapidamente em
perspectiva, a medida em que nos aproximávamos velozmente
do descampado no seu prolongamento.
As faixas brancas pintadas e alinhadas como um cruzamento
de pedestres marcando o início da pista, desapareceram
rapidamente sob o nariz do avião. A pista agora voltava
a parecer extremamente larga. A outra cabeceira já
se misturava no limite do horizonte próximo visível
à nossa frente. A uma determinada altura do solo, a
misteriosa altura de arredondamento, ele segurou o nariz mais
alto, puxando o manche suavemente para trás. Eu já
não conseguia ver o final da pista. Alguns segundo
depois, os pneus dos trens principais, sob as asas, tocaram
o solo, balançando o avião e fazendo um barulho
como se tivéssemos pousado sobre um cachorro que gritou
assustado.
Após o toque, ainda corremos sobre a pista com o pneu
de nariz, a bequilha, fora do solo por uma boa distância.
Depois, suavemente, ele colocou a bequilha no solo, recolheu
os flaps para a posição intermediária
de decolagem, ajustou o compensador e disse:
— Tá contigo! Agora é sua vez! —
colocou a manete de potência toda à frente e
soltou o manche.
Eu continuei com os olhos fixados na pista, cuidando para
manter a reta durante a curta distância de corrida até
sairmos do chão novamente. Ele me avisou do momento
de puxar o manche.
Voltei ao circuito de tráfego na altitude correta e
repeti o que ele havia feito. Ele me auxiliou durante outras
três aproximações, reduzindo a sua participação
nos comandos a cada pouso. No meu quarto pouso, eu tive a
impressão de estar solo. O pouso não foi bom,
mas a sensação foi ótima!
Finalmente, depois de cinco pousos realizados, muita tensão
e suor, o vôo terminou. Taxiamos de volta para o estacionamento
com o canopi aberto. O vento ajudava a refrescar as idéias.
Seguimos em silêncio. Milhares de imagens povoavam minha
mente. Entre elas, naquele momento, estava em destaque a visão
daquele mesmo ponto da cerca do estacionamento do aeroclube,
onde tantas vezes eu havia visitado, de bicicleta, trazendo
graxa e sonhos. Agora eu podia ver o mesmo sonho, mas já
estava do lado de cá da cerca. Uma satisfação
enorme tomou conta de mim.
Chegamos ao piso irregular do estacionamento, onde havia uma
pequena subida a ser vencida antes de chegar ao ponto final
de parada. Sem embalo inicial, tive que usar bastante o motor
para superá-la. Cortamos o motor, voltando a fazer
todos os procedimentos pausadamente. Aliás, agora eles
pareciam muito mais familiares.
A parada da hélice foi acompanhada de uma oscilação
curta e uma última explosão abafada no escapamento
do motor. Missão cumprida! Tirei os fones de ouvido.,
ainda com zunido constante na minha cabeça. Descemos
da aeronave e fomos para o hangar conversando sobre o vôo.
Na caminhada, de tempos em tempos eu olhava para trás,
para a imagem daquele pequeno avião ficando ali, pousado,
na paisagem do aeroclube.
Até hoje, mesmo depois de pilotar algumas das maiores
máquinas voadoras já inventadas pelo homem,
dentro e fora da atmosfera do Planeta, 25 vezes mais rápido
que a velocidade do som, eu constantemente olho para trás,
recordando com carinho daquele dia, daquele primeiro vôo,
daquele pequeno aeroclube da minha querida cidade de Bauru,
ouvindo às palavras do meu instrutor e vendo aquele
aviãozinho, guerreiro, meu amigo alado branco e azul,
brilhando no cenário da minha história, estacionado
entre os meus sonhos de menino e as minhas realizações
de homem.
“Ânimo jovem! Por este caminho se chega aos astros!”
“A la Chasse!”
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